26 outubro 2008

A morte anunciada

Quando minha mãe falou que Bisa Bernadina tinha morrido eu confesso que não soube no momento articular as ideias na cabeça. Sentimentos fatalistas sempre tomam conta de mim nessas horas.
Sim, ela era minha Bisavó e tinha até então 99 anos. Eu sabia dentro de mim, e no fundo toda família sabia, que em algum momento ela iria morrer, pois isso era o natural, o inevitável. Mas será que realmente sabemos esperar a morte?
Minha mãe e eu não choravamos, e na verdade eu sempre tento me conter, e pensei que a Bisa merecia descansar. Ficamos ocupadas em ligar para todos, avisar os familiares, tomar cuidado para a pressão arterial da vovó não subir quando recebesse a noticia... E no meio disso tudo eu sempre via a Bisa sorrindo, e seus cabelos todos brancos arrumados em forma de coque preso por um pente... Será que estamos realmente preparados para a morte?

Lembro dela sentada na porta - Lembro de todos, só não me peça pra gravar os nomes.Mas sei quem tu és, a filha da Dezimar - Ela dizia, e levantava seu braço a ralhar pros meninos fazendo poeira. Ela a contar as coisas do seu tempo, tempo longínquo quando era inconcebível se viver amasiado, sem a bênção do padre, onde moça não dizia que estava nos dias das regras e tão pouco pagava em mão de rapaz.
Suas histórias de um realismo fantástico,de mãe d'água e homem que vira bicho, de tesouro do império enterrados debaixo dos cajueiros, dos negros fujões, moças cegas que guardavam mapas de fortunas. A mais assustadora era a do cavaleiro fantasma, guardião de um baú de ouro, sendo que quem o seguisse poderia saber o paradeiro da fortuna perdida. Ela dizia que toda meia-noite ele passava pelo povoado, e o seu cavalo relinchava próximo a janela dos quartos. Eramos crianças e ficavamos assombrados quando o relógio badalava as doze.
Mas do meio pro fim ela se fez tão criança quanto nós, e pedia doces escondida, acolhia certas traquinagens, reclamava quando os "adultos" diziam que ela não podia fazer isso, comer aquilo, dizer acolá... Do meio pro fim perdeu também o pudor de dizer certas coisas, a velhice lhe deu o direito de ofender as vezes, de tirar suas propias conclusões.

Prepara uma pequena bagagem para a viajem, a sentinela ia ser longa. como será que a Bisa se sentiu, ao ver ao longo da sua vida seus filhos, netos e bisnetos morrendo e ela ficando? A morte realmente não quer se fazer entender. E nesse momento me corta a memoria, ela iluminada pelo sol que vinha da porta da cozinha da casa de minha avó, seus cabelos alvos e a claridade em volta da sua silhueta lhe emprestavam um ar profético - Quando chegar a minha hora de morrer, a Virgem Maria vira me dizer em sonho qual será o dia - ela disse serena, cheia de uma certeza carregada apenas pelos que já viveram muitos anos.
Se a Virgem veio lhe avisar eu não sei ao certo, mas talvez tenha lhe preparado o coração, pois diferentemente de nós ela espera a morte como uma visita de longe, que chega e senta, mas não se demora.

2 comentários:

Fóssil disse...

A minha avó morreu dia 18, ela já tinha 96 anos. Ela já sofria tanto com a doença dela que todo mundo já considerava a morte como um alívio para ela. E todos esperavam, mais cedo ou mais tarde, que ela nos deixasse. Mas é impressionante como sempre nos parece "mais cedo", ainda que tão tarde. As coisas para as quais mais nos preparamos são justamente aquelas que nos pegam desprevenidos.

Anônimo disse...

Sim, provavelmente por isso e